Foto: Ionara Sena
por Ítalo Rui
Imaginem a seguinte situação: vocês precisam ir à feira fazer compras. Chegando lá, observam a movimentação das pessoas, as barracas com os legumes, frutas e outros produtos e especiarias que vocês já conhecem. Num dado momento vocês chegam a uma barraca que está vendendo uma fruta (vamos considerar que é uma fruta, ok?). Essa fruta vocês nunca viram antes. A primeira coisa que aguça sua curiosidade é querer saber que fruta é essa. Ao se aproximar da barraca vocês observam a fruta, vocês podem tocá-la, sentir seu cheiro e até experimentar um pedaço.
Ao apreciar essa fruta, o cérebro de vocês não consegue identificar o sabor, não reconhece muito bem a textura. Ela tem um gosto próprio, um sabor que vocês nunca sentiram antes. Não chega a ser doce, mas também não é amargo, nem azedo. É um sabor outro. Esse bug na cabeça faz vocês questionarem o sabor dessa fruta (e até perguntar se é realmente uma fruta), se vale a pena levá-la no cesto que tradicionalmente vocês sempre levam para a feira. Fazem vocês questionarem também o porquê nunca viram a barraca com essas frutas que sempre esteve ali, mas por algum motivo, ela não era notada pelos frequentadores da feira.
Foi assim que me senti assistindo à vivência Entroncar a Jurema – o sopro da arte na mata, na Aldeia Anacé Japuara, em Caucaia, no último dia 23 de março. De acordo com a sinopse disponibilizada pelos artistas, “Entroncar a Jurema é uma perspectiva de um Teatro indígena cearense, a partir da cosmologia nativa de três corpos de diferentes povos: Jucá, Anacé e Potyguara. A narrativa abordada na ação-ritual, envolve a multiplicidade da Jurema Sagrada, por meio da bebida ancestral, da cabocla e da importância da árvore. A figura das irmãs, Jandira, Jupira e Jurema, costuram-se aos três artistas criadores para evocar as diferentes e particulares camadas espirituais do terreiro para a cena”.
Exercitei algumas tentativas de escrita, tentando buscar no meu repertório aspectos que me ajudassem a tecer uma análise sobre a obra e sinceramente não consegui. Não sou capaz de falar sobre este entroncamento. O que restaram foram dúvidas e várias perguntas no ar: qual é meu repertório teórico, sensível e imagético que faço uso para tentar tecer ou elaborar um pensamento sobre este entroncamento? O que devo falar? O que devo escrever? Descrever acaba sendo sempre o caminho encontrado, mas descrever a experiência também me parece meio limitante, já que cada pessoa naquele dia absorveu a vivência de um jeito diferente.
Foto: Ionara Sena
O teatro foi usado como ferramenta colonial para apagar histórias e também perder nossa sensibilidade. Logo, a presença dessas materialidades na cena hoje, além de serem um lugar de retomada da visão de um povo e da pulverização de um imaginário artístico (que segue sendo extinto), é aquela barraca com as frutas que comentei no início, que borra, que confunde e que desorienta os sentidos.
No dia da vivência fomos convocados a participar de uma ação ritualística em volta de um pé de caju gigante, e o que mais reverberou no meu corpo foi o envolvimento com aquilo que ainda não consigo dar nome. Se o teatro é o envolvimento entre os corpos que atuam e corpos que apreciam, o entroncamento permitiu um envolvimento que até então eu não havia visto. Em Entroncar a Jurema, viramos um corpo só. Um corpo coletivo que cantou e se envolveu pela convocação dos artistas Yapenu Juká, Yakekan Potyguara, Jardel Anacé e Goro Sham Pitaguary. Essa “ferramenta” foi o elemento mais forte de convocação que presenciei no teatro. Talvez, o teatro (ou aquilo que acesso como teatro) esteja justamente aí. Na capacidade de envolvimento coletivo que a vivência conseguiu estabelecer.
Entretanto, não acho e nem acredito que propostas artísticas a partir da cosmovisão de povos indígenas devem ser lidas somente como um dispositivo que acorde uma “sensibilidade perdida”, não creio que seja possível reanimar nossos corpos marcados por uma prática colonial que opera há mais de 300 anos. Não é sobre isso que trato aqui. Me parece uma visão muito cristã se considerarmos “Entroncar Jurema” dessa forma, como salvadora de uma sensibilidade adormecida. Acredito muito mais nessas vivências como marcadoras de um tempo. Como a produção de um corte e fratura na história muito mal contada do nosso teatro. Como a própria definição da palavra “entroncar” nos diz: juntar-se, reunir-se a um tronco principal. É um lugar de retomada a uma via que nunca deveria ter sido separada.
“Entroncar a Jurema” é um exercício teórico, sensível e físico para a reconstrução de um teatro indígena cearense e como todo exercício, me fez refletir sobre nossa história teatral. Que mais vivências como essa possam estar presentes nos circuitos teatrais do estado do Ceará e também do Brasil, para que as escritas sobre elas superem o tatear e que se aprofundem em suas raízes, troncos, galhos, folhas e frutos.
Ficha Técnica
Desenvolvimento de pesquisa: Coletivo Supita KirÎmbawa
Artistas: Yapenu Juká, Yakekan Potyguara, Jardel Anacé e Goro Sham Pitaguary.
Tutoria de pesquisa: Juão Nyn.
Publicado em 04 de abril de 2024