Escola de Formação e Criação do Ceará

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Medalha de ouro: dissecando corpos vivos

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Foto: Micaela Menezes

por Ítalo Rui

“A proposta é inspirada nas experiências cotidianas que atravessam a vida de uma atriz: testes, fracassos, cenas, sonhos e sucessos. São histórias de mulheres vivas, de gerações, pensamentos e classes sociais diversas, que têm em comum a necessidade de ‘se manterem vivas’ enquanto atrizes”. Esta foi a sinopse apresentada para a abertura de processo do espetáculo Medalha de Ouro, das atrizes Sol Moufer e Larissa Goes, sob direção de Andréia Pires na 11° edição da MOPI.

A peça mistura ficção e documentário. Uma “palestra performance dramática”. Isso fica evidente pelo regime de atuação empreendido pelas atrizes, que flertam com a palestra performance e que reencenam propositalmente com muitos clichês, personagens clássicas do imaginário coletivo, como Julieta e Macabéa. Outro recurso que reforça essa ideia de uma atuação em formato de palestra é o uso (muito bem acertado) dos microfones headset, que ajudam as atuantes nesse dissecamento e as colocam numa posição de especialistas, de alguém que veio para o palco apresentar os desassossegos da profissão. 

Apesar dos erros técnicos do próprio equipamento terem atrapalhado algumas cenas, quase perdendo seu ritmo, as atrizes, conseguiram contornar a situação, adaptando-se aos acasos e imprevistos, o que mostra, além de muita maturidade com a situação, que ambas estavam em sintonia e presentes na cena.     

Acredito que o que mais ecoou durante a apresentação de Medalha de Ouro foi a ideia de dissecação. Sol Moufer e Larissa Goes dissecam as experiências de atrizes que são suas contemporâneas e as mesclam com suas próprias trajetórias. Todavia não deixam de lado as atrizes que vieram antes delas, debruçando-se em parte do espetáculo sobre a trajetória de Mazé Melo, figura atuante na cena artística do estado, que preferiu “ser puta no Rio de Janeiro” (as mulheres tinham que tirar uma carteirinha de prostituta se quisessem atuar), mas acabou afastou-se da profissão, e retornou aos palcos décadas depois, criando, por exemplo o primeiro festival de teatro da terceira idade em Fortaleza. 

É a partir da história de Mazé e de tantas outras atrizes do Ceará que Medalha de Ouro lança seu olhar e faz essa costura narrativa. Para aquelas que vieram antes, aquelas que deram uma pausa e aquelas que continuam. O espetáculo, ao dissecar um corpo vivo (este corpo-atriz não está morto), discute como nosso imaginário social foi construído, muito influenciado, obviamente pelo olhar torto e estereotipado da indústria cinematográfica e televisiva do sudeste brasileiro.

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Foto: Micaela Menezes

A direção ao assumir e mostrar para os espectadores a engenharia da caixa cênica neste metateatro, revela não só as estruturas físicas do próprio Teatro Dragão do Mar, como por exemplo a manipulação do lustre feita por um técnico do espaço, a descrição dada pelas atrizes sobre os equipamentos que preenchem o palco italiano, mas acaba, metaforicamente, revelando as engrenagens e as estruturas por detrás desse sistema que tritura, dissolve, e violenta corpos femininos que só querem viver do seu ofício, atuar. 

Mas então, o que é atuar? O que seria atuação? Essa atividade seria definida como um tipo de técnica desempenhada por uma pessoa que consegue desenvolvê-la tão bem a ponto de encontrar o sucesso? Seria o conjunto de saberes que fazem da pessoa que a utiliza ser chamada de atriz? O que é ser uma atriz, ou melhor, o que é ser uma atriz no nordeste?

Medalha de  Ouro, de dissecação após dissecação, nos indaga sobre qual seria o ofício de uma atriz brasileira e quais imaginários são construídos pelas atuantes dessa profissão, já que o que parece é que o repertório acumulado pelo esforço, tempo e dedicação nunca será suficiente para seguir no ofício. O que resta, pelo menos a partir da perspectiva delas, é de cansaço em cansaço, seguir no sonho, costurando peças e tecidos a muitas mãos. Fortalecendo o corpo para continuar sonhando com um panteão de atrizes cearenses, referências reais e possíveis.  

Ficha Técnica

Pesquisa e Idealização: Sol Moufer

Direção: Andréia Pires

Elenco: Sol Moufer e Larissa Goes

Figurino: Dionísio

Dramaturgia: Sara Síntique e Andréia Pires

Trilha Sonora: Pedro Madeira

Tutoria: Daniele Ávila Small

Interlocução dramatúrgica: Henrique Fontes